sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Menina-zumbi

Valquíria era uma menina solitária. Vivia só, acompanhada de um grande amigo que ninguém via. Sempre que alguém a via, estava só.

Quando criança, não gostava de brincar com as meninas, não gostava de brincar com os meninos, temia os adultos. Somente o seu peculiar amigo a entendia. E então, aquela menina-zumbi foi crescendo acompanhada de seu grande amigo.

Sofria de insônia. Aliás, não era falta de sono o que sentia. Tinha medo de adormecer e, ao acordar, pensar-se viva. Era uma morta, sabia que era morta, andava como morta, agia como morta e a cada dia morria mais.

A morte nunca a incomodou. Afinal, morrer faz parte do processo da vida e a tristeza e melancolia são partes da nossa humanidade.

O grande amigo de Valquíria, certo dia, mudou-se para longe. O sol nasceu e a jovem moça floresceu nos encantos do amor e da vida.

Encontrou um rapaz, ou melhor, o rapaz a encontrou, roubou seu coração e mostrou a ela as coisas bonitas do mundo.

Logo ela viu a ilusão por trás do belo e a grandeza do mundo foi diminuindo. Sentia-se sozinha e sentia falta de seu amigo. Valquíria suplicava o retorno daquele que a entendia.

Tendo suportado o mundo tanto quanto conseguiu, a jovem moça não pôde mais. Abriu suas asas do décimo sexto andar e voo.

Voando, encontrou-se com seu grande amigo, a morte, e ao planar voou encontrou paz e soube-se estar no lugar devido.

E no outro mundo encontrou amigos, encontrou compreensão e nunca mais esteve só.

- Menina-zumbi, Luã Áquila.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Relojoeiro

A obsessão por janelas abertas despontou juntamente com o pavor de lidar com portas abertas. Portas devem permanecer fechadas! O tempo deve ser imóvel. A vida, em si, é dura, difícil. Mas quando imobilizamos o tempo, tudo é possível, tudo é suportável.

Por muito tempo, vinha policiando as portas constantemente. Afinal, a maresia estragava os móveis, a poeira entrava e a vida ia acontecendo. O medo do desconhecido, da vulnerabilidade perante a vida, tudo isso atormenta e nos coage a permanecer dentro de casa.

Observar, da janela da sala, a rua, com suas paisagens e pessoas transitando, sempre fora um hábito que tive. Geralmente, fazia isso só, acompanhado, por vezes, de uma xícara de café (que estava frio quando o bebia, pois, perdia-me observando o passar dos dias).

Tudo era leve, tudo era bonito, até mesmo quando era triste, era bonito. Tudo era seguro. Desde que, claro, as portas estivessem fechadas. Dessa forma, olhava para o mundo de uma distância confortável. Queria a brisa leve dos dias e não a ventania que acompanha um temporal.

Certo dia, perdido nas paisagens da vida, deparei-me com uma gaiola fixada na varanda de um apartamento do outro lado da rua, que dava de frente para minha janela. Dentro da gaiola havia um periquito, desses bem breguinhas que a gente costuma ver na casa das avós.

De repente, um vento forte planou violentamente na rua e a pequena gaiola caiu no chão, arrebentou-se e o periquito começou a voar. Em meu desespero, esqueci completamente do pavor de portas abertas e saí correndo de dentro de casa, deixando a porta largamente descerrada, e fui tentar resgatar o pequeno periquito. Não consegui.

Quando cheguei ao meio da rua escorreguei, caí, ralei os joelhos e os braços, quebrei os óculos, me feri. Ao retornar para casa, encontrei os móveis empoeirados, meus livros derrubados pelo vento e tive um sentimento de invasão.

Tive uma noite difícil e uma madrugada pior ainda.

No outro dia, após acordar, prontamente, fechei as janelas, abri a porta e saí, esperando ser pego, naquele dia, por um forte temporal.

- Relojoeiro, Luã Áquila.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Via da mão dupla

Quando muito novo, criança ainda, eu e minha família nos mudamos para os Estados Unidos. Passei grande parte da minha infância lá. Estudei, fiz amigos, criei laços (o tipo de laço que uma criança cria com aquilo que circunda seu universo infantil) e, um dia, retornei.

Quando você faz uma longa viagem ou muda-se para algum lugar, a recepção no retorno ao lar costuma ser grandiosa. As pessoas se mobilizam para te ver e ouvem suas experiências com atenção e bastante curiosidade (mesmo que você não queira falar delas).

É engraçado. Lembro-me de ouvir coisas, enquanto morava no exterior, do tipo “a gente sente muita saudade do nosso país né?”, “que saudade do Brasil!”, “que país estranho”, “aqui, as pessoas são muito frias”.

Recordo-me que sempre que nos juntávamos, nós, brasileiros, diziam-se essas coisas. Afinal, é muito complicado nascer em um lugar, ter sua identidade formada lá e migrar para outro. Quem te recebe está de braços abertos, desde que você se comprometa a adequar-se aos costumes dos hóspedes.

Quando me perguntavam (ou perguntam) sobre minha experiência no exterior, sinto-me coagido a expressar estranhamento com os costumes de lá.

Sou daqui e o que é diferente daqui é (ou deve ser) estranho, incomum, peculiar.

Acontece que, para mim, não foi bem assim. Devido à idade com que migrei do Brasil, não houve um sentimento de peixe fora d’água e, se houve, foi bastante insignificante e não compõe algo forte em minha memória. No retorno ao lar, sim. Quando retornei para cá tive um choque. Não diria que era um peixe fora d’água, mas um peixe fora do Planeta Terra, orbitando na atmosfera de Marte.

O sentimento de não pertencimento ao seu grupo de origem é estranho, desconfortável. Quando nos sentimos deslocados fora do nosso lugar de origem, por pior que seja, é esperado.

Houve uma ambivalência. Veja bem, retornei no início da pré-adolescência, uma fase onde buscamos a aceitação e damos os primeiros passos concretos no sentido de construir uma identidade que acreditamos ser individual, nossa.

Foi como uma bifurcação no meio da estrada. Mas eu, cabeça-dura do jeito que sou, insisti em pavimentar outra estrada, uma que estivesse entre os dois extremos.

E dessa forma eu continuei caminhando, procurando estar aberto ao novo, disposto a esquecer o velho (e a lembrá-lo também).

Assim, descobri que as pessoas têm muito em comum, independente da origem. Descobri que todos nós queremos sentir aceitação, pertencimento. Descobri que o nosso lar, a nossa casa, deve ser onde estamos hoje, com o reconhecimento de que só estamos aqui graças ao nosso passado, e que o passado sempre será uma parte de nós.

O importante mesmo foi entender que o sentimento de deslocamento (embora contribuído pelo cenário social) estava dentro de mim. A única coisa que podia fazer era continuar, e continuo.

E, dessa forma, eu sigo caminhando.

- Via da mão dupla, Luã Áquila.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

[Novos] Hábitos

Como de costume, meu primeiro impulso ao acordar foi olhar-me no espelho. Um espelho grande que fixei na parede do meu quarto de tal forma que sempre me vejo nele ao acordar ou dormir. O mais importante é sempre olhar-se no espelho. E escolher em qual espelho olhar-se.

Até agora não me apresentei. Logo você irá entender o porquê. Tudo tem a ver com esse tal de espelho.

Sempre fui uma pessoa organizada. Vida organizada, quarto organizado, interior organizado. E o olhar-me no espelho nada mais era do que a constatação de ser uma pessoa organizada. A sensação de olhar-se e reconhecer cada milímetro de si, de encontrar na sua forma material o reflexo daquilo que você se propõe a ser é uma sensação deliciosa, do tipo “missão cumprida”.

Mal me recordo que dia era, apenas lembro de ter dormido até tarde. Acordei pouco depois do meio dia e, como de costume, fui olhar-me nesse tal espelho.

Não sei se você já saiu de casa tendo a certeza de não ter esquecido nada que precisava para, apenas no momento em que precisou de determinado objeto, reconhecer que o mesmo não estava junto a você. Daí vem aquela sensação momentânea – não costuma durar mais do que uma fração de segundo – de incerteza com a realidade. Tudo fica turvo. Nada é confiável. Tudo é nada e os limites da certeza e da cotidianidade são ampliados de maneira violenta.

Tinha a certeza, do fundo da minha alma, que o espelho estava intacto, afinal, antes de dormir, como de costume, olhei-me nele (e ele olhou de volta). Imagine o meu desespero ao acordar e deparar-me com os pequenos pedaços do que antes eram um espelho espalhados pelo chão.

Lembra de quando falei daquele sentimento de incerteza com a realidade? Pior ainda é a ambivalência entre acreditar em si ou aceitar-se louco. E foi o que naquele momento – por uma fração de segundo – senti.

Apesar de ter acordado tarde, não queria perder o dia e decidi deixar os cacos no chão, quebrados, destruídos.

Nesse dia eu não dormi em meu quarto; não queria encarar o espelho quebrado.

Após uma semana, enfim, juntei os cacos do espelho, coloquei-os em um saco preto de lixo, coloquei também a moldura do espelho, onde estava gravado meu nome, joguei o espelho fora.

Comprei cinco espelhos e fiz uma reforma em meu quarto: pus mais uma janela. Não me olho mais antes de dormir ou ao acordar. Abro as janelas na esperança do vento forte quebrar os espelhos, na esperança de uma desconstrução.

- [Novos] Hábitos, Luã Áquila.